quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Encontre sua paixão e morra por ela [2]



"Se você vai tentar, vá com tudo. Senão, nem comece. 
Se você vai tentar, vá com tudo. 
Isso pode significar perder namoradas, esposas, parentes, empregos e talvez a cabeça. 
Vá com tudo. 
Isso pode significar ficar sem comer por 3 ou 4 dias. Pode significar passar frio num banco de praça. Pode significar cadeia, menosprezo, insultos, isolamento.
Isolamento é um presente, todos os outros são testes à sua resistência, do quanto você realmente quer fazer isso. 
E você vai fazer. Apesar da rejeição e dos piores infortúnios. 
E isso será melhor do que qualquer coisa que você possa imaginar. 
Se você vai tentar, vá com tudo. 
Não há outro sentimento como esse. 
Você ficará sozinho com os deuses e as noites irão flamejar como fogo. 
Faça, Faça, Faça. 
Vá com tudo, por todos os caminhos. 
Você cavalgará a vida até a gargalhada perfeita. 
E essa é a única boa luta que existe." 


Charles Bukwoski, Jogue os dados










* fiquei tão mobilizada enquanto escrevia o post anterior (especialmente com a tradução da correspondência de Bukwoski - ao final, acho que consegui ser fiel ao "velho safado estilo buk de ser") que acabei por esquecer dos dados! agora sim - que a Fortuna esteja ao nosso lado!

** percebeu a voz que narra a animação? reparou nas legendas? isso! é do Bono Vox.

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Encontre sua paixão e morra por ela


8-12-86

Oi John:

Obrigado pela ótima carta. Não é que seja dolorido lembrar de onde vim. Você conhece minhas origens - essas pessoas que estão tentando escrever sobre mim – elas simplesmente não estão acertando. Elas chamam minha antiga vida de "burocrática", ou usam esse termo, "9 to 5". Nunca foi 9-5. Não fazem horário de almoço nesses lugares. De fato, em muitos deles, pra garantir seu emprego, você não deve nem levar o almoço. Nunca te pagam hora extra e se você reclamar por seus direitos sempre há outro otário pronto pra tomar seu lugar.

Você sabe o meu velho ditado, não? "A escravidão nunca foi abolida, só foi ampliada para incluir todas as cores."

O que me dói mesmo é ver a dignidade se exaurindo nestes homens que lutam para manter empregos que não querem, mas temem uma alternativa pior. Estas pessoas parecem esvaziar, como balões que soltam lentamente o ar. Transformam-se em corpos esgotados. Uns cabeções, com mentes assombradas e obedientes. Os olhos desbotam. A voz fica feia. O corpo fica feio. O cabelo. As unhas. Os sapatos. Tudo fica feio.

Nunca entendi o que leva as pessoas a despender a vida inteira em um emprego assim. Envelheci, e ainda não consigo entender. Por quê eles fazem isso? Por sexo extraconjugal? Pra dormir com a TV ligada? Pra pagar por anos, mês a mês, por um carro? Pelos filhos? Pra que eles continuem errando os mesmos erros deles?

Logo no início, quando pulava de emprego a emprego, eu era jovem e tolo o suficiente pra alertar meus colegas: "Ei, o patrão pode chegar a qualquer momento e pôr todos no olho da rua, só porque ele quer, percebem isso?” Eles apenas me olhavam – o que eu lhes dizia simplesmente não cabia em suas mentes.

Vemos agora na indústria uma avalanche de demissões (fábricas falindo, mudanças, novos equipamentos). Estão demitindo centenas de milhares e a única reação destes pobres miseráveis é baixar os olhos, atordoados:

"Eu depositei aqui 35 anos da minha vida ..."

"Não é justo ..."

"Eu não sei o que fazer ..."

Tenho ganas de sacudir os ombros deles e dizer: 'patrões não pagam salários que possam te levar à liberdade, ok? apenas o necessário pra mantê-lo vivo pra que volte ao trabalho todas as manhãs'. É tão claro isto. Por quê ninguém enxerga? Por que não mudar antes que eles te passem a rasteira? Por que esperar?

Tudo o que escrevi até agora foi em aversão a isto. Foi um alívio ter mandado o sistema à merda. E agora que cheguei aqui, um escritor "chamado profissional" (é o que dizem), descobri que existem outros desgostos além do sistema.

Lembro de um dia, eu trabalhava como empacotador em uma empresa luminária, um dos meus colegas, na mesa ao lado, de repente gritou: "Eu nunca vou ser livre!"

O chefe passava por perto (Morrie - ainda lembro seu nome). Temi por sua reação. Mas ele apenas soltou uma gargalhada silenciosa, como se apreciasse o fato de que aquele homem nunca teria nas mãos o controle de sua própria vida.

Tive muita sorte de ter escapado dessa prisão. Demorou, mas quando aconteceu foi como um júbilo, a sensação inenarrável de viver um milagre. Já não escrevo como antes, percebo que minha mente está envelhecida e meu corpo cansado, mas também sei que já fui além do momento em que a maioria dos homens jamais pensou em continuar. Já que comecei tão tarde sinto que tenho esta dívida comigo. Mesmo que minhas palavras comecem a vacilar e eu precisar ser amparado pra subir um lance de escadas ou não souber distinguir um pássaro azul de um clipe de papel, sinto que, ainda assim, algo em mim vai se lembrar (não importa o quão longe eu tenha ido) da sujeira, da confusão, da bagunça de onde eu saí, para, pelo menos, chegar aqui, ao que considero uma forma generosa de morrer.

Não ter perdido a vida por completo parece-me uma realização digna, ao menos para mim.

seu garoto,  

Hank.



*







* Charles Bukwoski escreveu esta carta para seu editor John Martin, em 1986, aos 64 anos. quinze anos antes, este mesmo editor foi até ele com a proposta de um salário vitalício de US$ 100 por mês, com a condição de que largasse o emprego de auxiliar de escritório em uma unidade dos correios para se tornar escritor. Bukwoski aceitou. tinha então, 49 anos. seu primeiro livro, Cartas na Rua (Post Office), foi lançado dois anos depois. "Tudo começou como um erro", anuncia Charles na primeira linha do romance, francamente autobiográfico. na voz de Henry Chinaski, seu alter ego, Bukowski narra suas memórias em tom hilário e melancólico: o erro teria sido candidatar-se à vaga de carteiro temporário no início dos anos 50. quando se deu conta, estava em seu segundo emprego na empresa e somava catorze anos em uma rotina maçante – ainda mais para um homem sempre de ressaca e já na meia-idade. 

** sobre este tema – e além - permita-me sugerir o vídeo abaixo. no mínimo você vai sorrir. ou se surpreender.


*** no título, uma das possíveis traduções para a citação "find what you love and let it kill you” - C.B.

As cidades e o desejo



"Quando a voz interna que fala por meio de sonhos e projetos é sufocada por desejos e suas subsequentes desilusões, perdem-se a ingenuidade e o élan que são imprescindíveis. Para onde quer que se corra ou se olhe, lá está o desejo. 
E não bastará saciá-lo no momento, porque o desejo está sempre mais preocupado com a preservação de sua potência do que com a própria experiência de usufruir sua realização". 

Nilton Bonder, in: O Sagrado


*







* as Cidades Invisíveis (1972), do escritor italiano Ítalo Calvino imagina um diálogo fantástico entre Marco Polo, "o maior viajante de todos os tempos" e o famoso imperador dos tártaros, Kublai Khan. melancólico por não poder ver com os próprios olhos toda a extensão dos seus domínios, Kublai Khan faz de Marco Polo o seu telescópio, o instrumento que irá franquear-lhe as maravilhas de seu império. Polo então começa a descrever minuciosamente 55 cidades por onde teria passado, agrupadas numa série de 11 temas: as cidades e a memória, as cidades e o céu, as cidades e o mortos, as cidades delgadas, entre outras. as visões, projetadas numa rigorosa arte combinatória, bebem de muitas fontes, desde as Mil e Uma Noites até as megalópoles que vemos no cinema. o resultado é um livro extraordinário e indefinível. em nenhuma outra obra Ítalo Calvino chegou tão perto dos valores que considerava fundamentais à sobrevivência da "espécie literária": leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e consistência. é impossível não se perder nessas cidades, como é impossível não se enredar nessas teias de palavras. [da Folha de São Paulo]

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Tanto mar, tanto mar...


"O mar, o mar, sempre recomeçado!" Paul Valery


"Onde há-mar, há-braços e sol-risos." (Anônimo)


"O mar é a religião da natureza." Fernando Pessoa


"Se todos os rios são doces, de onde o mar tira o sal?" Pablo Neruda, in O Livro das Perguntas 


"Ó mar salgado, quanto do teu sal, são lágrimas de Portugal?" Fernando Pessoa, in Mar Português

"Para o desejo do meu coração, o mar é apenas uma gota." Adélia Prado


Homem livre, o oceano é um espelho fulgente
Que tu sempre hás-de amar. No seu dorso agitado,
Como em puro cristal, contemplas, retratado,
Teu íntimo sentir, teu coração ardente.

Gostas de te banhar na tua própria imagem.
Dás-lhe beijo até, e às vezes, teus gemidos
Nem sentes, ao escutar os gritos doloridos,
As queixas que ele diz em mística linguagem.

Vós sois, ambos os dois, discretos tenebrosos;
Homem, ninguém sondou teus negros paroxismos,
Ó mar, ninguém conhece os teus fundos abismos;
Os segredos guardais, avaros, receosos!

E há séculos mil, séculos inumeráveis,
Que os dois vos combateis numa luta selvagem,
De tal modo gostais numa luta selvagem,
Eternos lutadores ó irmãos implacáveis!

Charles Baudelaire, in As Flores do Mal

"De todos os cantos do mundo
Amo com um amor mais forte e mais profundo
Aquela praia extasiada e nua
Onde me uni ao mar, ao vento e à lua." 
  
Sophia de Mello Breyner Andresen


"Naquele momento o mundo parou. E das distâncias vieram as águas e o barulho do mar." Hilda Hilst 

"Para adiante! Pelo mar largo!
Livra o corpo da lição da areia!
Ao mar! - Disciplina humana para a empresa da vida!
Meu sangue entende-se com essas vozes poderosas.
A solidez da terra, monótona,
parece-me fraca ilusão.
Quero a ilusão grande do mar,
multiplicada em suas malhas de perigo.

Quero a sua solidão robusta,
uma solidão para todos os lados,
uma ausência humana que se opõe ao mesquinho formigar do mundo,
e faz o tempo inteiriço, livre das lutas de cada dia.

O alento heróico do mar tem seu apelo secreto,
que os homens sentem, seduzidos e medrosos.

O mar é só mar, desprovido de apegos,
matando-se e recuperando-se,
correndo como um touro azul por sua própria sombra,
arremetendo com bravura contra ninguém,
e sendo depois a pura sombra de si mesmo,
por si mesmo vencido. É o seu grande exercício.

Não precisa do destino fixo da terra,
ele que, ao mesmo tempo,
é o dançarino e a sua dança.

Tem um reino de metamorfose, para experiência:
seu corpo é o seu próprio jogo,
e sua eternidade lúdica
não apenas gratuita: mas perfeita.

Baralha seus altos contrastes:
cavalo, épico, anêmona suave,
entrega-se todo, despreza ritmo
jardins, estrelas, caudas, antenas, olhos, mas é desfolhado,
cego, nu, dono apenas de si,
da sua terminante grandeza despojada.

Não se esquece que é água, ao desdobrar suas visões:
água de todas as possibilidades,
mas sem fraqueza nenhuma.

E assim como água fala-me.
Atira-me búzios, como lembranças de sua voz,
e estrelas eriçadas, como convite ao meu destino.

Não me chama para que siga por cima dele,
nem por dentro de si:
mas para que me converta nele mesmo. É o seu máximo dom.
Não me quer arrastar como meus tios outrora,
nem lentamente conduzida.
como meus avós, de serenos olhos certeiros.

Aceita-me apenas convertida em sua natureza:
plástica, fluida, disponível,
igual a ele, em constante solilóquio,
sem exigências de princípio e fim,
desprendida de terra e céu. 

Cecília Meireles, Mar absoluto


"Ergueste para mim os olhos, tão de mar que neles passavam barcos ao longe, vôos tranquilos de gaivotas". Rosa Lobato de Faria, A trança de Inês


"No mar estava escrita uma cidade" C. Drummond de Andrade, Mas viveremos



"Agora eu já sei, da onda que se ergueu no mar..." Tom Jobim, Wave


*







* Foi desde sempre o mar... nem só porque a morte e a vida nasceram nele, mas pelo ilimitado, incontrolável, imensurável, infinito, abarcador. Pelo que não tem nome... A terra é azul porque o céu espelha o mar? Ou é o mar que reflete o céu? Onde começa um e acaba o outro? Não sei onde está o limite. 72% de água salgada - mais da metade do que sou flui e se alastra e se movimenta com as marés. Como definir-me? Como limitar-me? Represar a sede em mim? Eu? Bebo horizontes! Que posso saber da vida? Que vem em ondas, como o mar, num indo e vindo infinito. Do seu significado? No fundo permanece o mistério absoluto: fendas abissais, monstros primitivos, tesouros perdidos. E a morte. Transformando rocha em areia. Areia em sal. Sal em vida. Assim para sempre. Sei que o mar é minha pátria. Meu pai e minha mãe. O amante que se compraz em seduzir e envolver. O lar onde meus olhos encontram conforto e a paz. O resto é mar, é tudo o que não sei contar. Mais nada.


** [nos sublinhados, as citações de: 1. Cecília Meireles (frase que inicia o poema Mar Absoluto); 2. Nelson Rodrigues; 3. Cecília Meireles (retirada do poema Noturno); 4. Lulu Santos (da canção Como uma Onda); 5. Tom Jobim (da canção Wave). no título, refrão da canção Tanto Mar, do Chico Buarque]

*** [os créditos das fotos 2, 7 e 9 vão para Raimundo Arrosi - 2 e 7, Balneário Camboriu; 9, Itajaí. A foto de número 4 é de Guaraci Zukoski, da Praia Brava, em Itajaí]

**** este é o post de número 700 do blog. vai dedicado ao leitor que pediu por um texto "mais explícito - luciene pura" [sic] e que revelasse a minha essência.

sábado, 26 de janeiro de 2013

S de amor




"Afonso: Conheci a Amélia ainda na primária. Foi o prelúdio do que seria o amor. Um ligeiro esboço de emoções. O primeiro devaneio, que faz que alguém ganhe relevo no meio de todos os outros. Como se o sol lhe batesse com mais intensidade ou os sons de todos se agachassem para que a sua voz pudesse cintilar. Para os outros era magricela. Para mim, elegante. Para os outros não passava de um nariz empinado, para mim, inteligente. Simplesmente fascinante. Segura de si. Talvez não com o mesmo deslumbramento, ou talvez muito longe disso, mas a Amélia correspondia às minhas atenções. Conversava comigo no muro do recreio – pois a escola ainda separava os meninos e as meninas. E esperava por mim no final das lições para me acompanhar a casa. Partilhava comigo as suas ideias de futuro, os seus medos e as suas ambições para quando fosse grande. Sentia-me um privilegiado.

Sozinho, em casa, exasperava com saudades dela. Sobretudo nas férias grandes. Faltava-me o bálsamo da sua face para me encher os olhos. E, como não tinha fotografias dela, tentava desenhar o seu rosto no papel. Mas não era grande artista. Nunca fui de pinturas. Sentia-me impotente a passar para o papel as linhas que tinha na minha cabeça. Enfurecia-me. Amarrotava o papel e deitava-o fora com raiva. Por vezes até chorava. Foi quando descobri que a saudade dói. Ou será o amor?

Um dia entreguei-lhe um livro de autógrafos. Um livrinho que dávamos aos amigos para que escrevessem umas dedicatórias, uns pensamentos, uns poemas ou tão simplesmente fizessem uns desenhos. Com folhinhas debruadas a doirado e uma fitinha colorida para marcar a folha onde tinham de escrever. Passados todos estes anos, dá gosto revisitar estes pedaços de papel que são pequenas páginas de grandes memórias. Lembro-me que Amélia escreveu um poema lindo. De letra forte. Bem carregada. Como ela, que sempre tinha sobressaído entre as outras, reparei na sua letra S. Eu escrevia ainda os esses como minha mãe me ensinara. Uma perninha, depois uma cabeça redondinha e o resto do corpo arqueado, como as costas de um gato sentado. Mas a letra dela era já emancipada. Escrevia os esses como uma cascavel, uma linha altiva, com duas curvas, mas de cabeça levantada.

Senti-me na minha condição de menino – que era – na carteira inclinada da primária, com o tinteiro de porcelana e um rego escavado na madeira para segurar os lápis. Enquanto ela, apesar de franzina, parecia já não caber naqueles bancos de madeira. Parecia ser já madura, com letras de gente grande. Pela primeira vez na vida senti não estar à altura de alguém. O magnetismo do seu temperamento forte deixava-me intimidado. Sentia-me um menino frágil. Mas depois pensei, que diabo, nem tudo estava já perdido. Eu também podia evoluir. Como os vendavais começam em simples brisas, também podia começar com coisas simples.  Podia começar por mudar a grafia. Por exemplo, escrevendo os esses como os da Amélia. Então, durante dias, espantei o meu S de gato sentado e amestrei a mão para o desenho da sua serpente cascavel. Uma e outra vez. E a partir daí, sempre que escrevia um S, sorria. Era como um soneto. Um S de amor.

Entretanto acabou a primária. Vieram as férias grandes e ela partiu para outra escola. Via-a de tempos em tempos. Estudava os seus horários e forçava encontros, ainda que dando um ar de casualidade. Mas estes eram cada vez mais breves e espaçados. A nossa história tinha cada vez menos verbo, cada vez mais reticências e espaços em branco. Um dia, não sei quando, sem dar por isso, teve um ponto final. Restaram imagens aprazíveis de uma infância feliz e de um coração que se tornou mais sensível e aprendeu uma outra forma de amor. E restaram até hoje os esses de cascavel da Amélia, que todos os dias me saem dos dedos, agora já sem esforço, de forma rotineira e casual. De vez em quando, muito de vez em quando, ainda me rasgam um sorriso nos lábios.

Passados uns tempos, voltei a rever as velhas carteiras de madeira, mas com outras caras. Agora eu era o professor que ensinava a música da tabuada e o bê-á-bá. Quando tive de lhes ensinar as primeiras letras, comecei pelo a e i o u, mas, depois, vieram as consoantes e, já lá para o final, a letra S. Na ardósia preta do quadro, desenhei com o giz uma perninha, depois uma cabeça redondinha e o resto do corpo arqueado, como as costas de um gato sentado. Fiquei a olhar para o quadro. Deixei-me rir. Já não escrevia assim havia tanto tempo. Apaguei o que escrevera e disse aos miúdos: vou ensinar-vos um S mais simples. Querem ver? É assim... um risco, com duas curvas, como se fosse uma serpente, uma cascavel de cabeça levantada. Simples, não é?

Durante estes anos, eduquei centenas de crianças. A ardósia deu lugar ao quadro branco e o giz reformou-se perante o colorido dos marcadores. Agora, andam pela cidade várias gerações que escrevem um S de serpente cascavel. A minha Alice, com quem me casei sei lá há quanto tempo, não sabe desta história secreta que resguardei na minha intimidade. Trabalha no registro civil sem saber que cada S serpenteado que as pessoas assinam no bilhete de identidade é o perpetuar de um amor longínquo, que eu não vivi, mas que nunca esqueci. Uma pequena infidelidade da memória.

A Amélia continua linda. É funcionária na estação de correios, onde diariamente centenas de pessoas preenchem papéis e assinam o seu nome. À sua frente passam milhares de letras. Entre elas, milhentas serpentes cascavéis, sem que ela saiba que são serpentes, sem que saiba que são as suas serpentes, sem que saiba que são sonetos, sem que saiba que é um S de amor, a marca digital... do meu primeiro amor."


João Morgado, S de Amor, (capítulo do livro Diário dos Infiéis)



*








* porque todas as letras, todas as palavras e todos os sons deveriam ser de amor. unicamente. ** Diário dos Infiéis é o primeiro romance do jornalista e escritor português João Morgado, lançado em 2010 (Diário dos Imperfeitos, de 2012, é o seu segundo romance e o número 2 da trilogia que pretende finalizar até 2014). nenhum destes livros ainda foi lançado no Brasil, mas, vencendo uma forte barreira emocional, comprei a edição em e-book e iniciei a leitura há poucos dias. o excerto acima é um capítulo inteiro - e cada capítulo é como um conto: encerra em si uma história completa.

Sem fona ou Ca fona?


  •  Com?

  • ...ou sem?



*



 






* se você é novo por aqui e acaba de chegar, explico: não sou crítica musical. não estudei música. não trabalho com música. não venho de família de músicos - aliás, não tenho nenhuma tradição musical. ou seja, música não é minha praia, at all. mas tenho minhas preferências e sou corajosa o suficiente pra postá-las aqui vez ou outra (mesmo sendo estes - os posts musicais - os menos comentados e visualizados. hãm-hãm. chato, né?). é que fiquei encucada com uma notinha que li há algums meses. dizia que o crítico musical Joe Bishop, do jornal inglês The Guardian, "considera que a música “Ai se eu te pego”, do brasileiro Michel Teló "não virou hit no Reino Unido e nos Estados Unidos, porque as pessoas destes países são normais, pensam direito e não falam português”

Enquanto reescrevo essa enorme besteira acima, penso que o mais sensato teria sido imediatamente interromper a leitura e esquecer esse babaca xenófobo, apesar de concordar com ele: o enorme sucesso internacional de Michel Teló é um tanto... digamos... desproposital. mas continuei com a resenha. para ler isso aqui: "Deixa eu te dizer algo, Michel Teló: sanfonas não têm espaço na música pop. É um instrumento antiquado que faz com que todas as músicas pareçam jingles baratos de rádio romenas". 


Como eu desconheço totalmente as rádios romenas, deixo aqui a questão que vem me cutucando há meses: com ou sem?


  
** mais duas amostras de música pop 'com fona'. 

*** salva pelo gaita: os lindinhos tocando Asa Branca são coreanos. mas você já sabia, não?

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Alguns, achando bárbaro o espetáculo, prefeririam (os delicados) morrer



"Eu sinto fortemente que não é suficiente simplesmente viver no mundo como ele é e fazer o que os adultos disseram que você deve fazer, ou o que a sociedade diz que você deve fazer. Eu acredito que devemos estar sempre nos questionando. Eu levo muito a sério a atitude científica de que tudo o que você aprende é provisório, tudo é aberto ao questionamento e à refutação. O mesmo se aplica à sociedade. Eu cresci e através de um lento processo percebi que o discurso de que nada pode ser mudado e que as coisas são naturalmente como são é falso. As regras criadas pela sociedade não são naturais. Elas podem ser mudadas. E mais importante: há coisas que são erradas e devem ser mudadas. Depois que percebi isso, não havia como voltar atrás. Eu não poderia me enganar e dizer: 'ok, agora vou ali tomar uma cerveja'. Após me dar conta que eu poderia enfrentar os problemas fundamentais do mundo, eu não pude mais viver sem realizar isto."

Aaron Swartz, em 2009, aos 22 anos

 

*








* Aaron Swartz tinha 22 anos quando explicou porque fazia o que fazia, porque era quem era. Aos 26, ele está morto. Foi encontrado enforcado em seu apartamento de Nova York na sexta-feira, 11 de janeiro. Provável suicídio. Talvez a maioria não o conheça, mas Aaron está presente em nossa vida cotidiana há bastante tempo. Desde os 14 anos, ele trabalha criando ferramentas, programas e organizações na internet. E, de algum modo, em algum momento, quem usa a rede foi beneficiado por algo que ele fez. Isso significa que, aos 26 anos, Aaron já tinha trabalhado praticamente metade da sua vida. E, nesta metade ele participou da criação do RSS (que nos permite receber atualizações do conteúdo de sites e blogs de que gostamos), do Reddit (plataforma aberta em que se pode votar em histórias e discussões importantes), e do Creative Commons (licença que libera conteúdos sem a cobrança de alguns direitos por parte dos autores). Mas não só. A grande luta de Aaron, como fica explícito no depoimento transcrito para o post, era uma luta política: ele queria mudar o mundo. E queria mudar o mundo como alguém da sua geração vislumbra mudar o mundo: dando acesso livre ao conhecimento acumulado da humanidade pela internet. E também usando a rede para fiscalizar o poder e conquistar avanços nas políticas públicas. Movido por esse desejo, Aaron ajudou a criar o Watchdog, website que permite a criação de petições públicas; a Open Library, espécie de biblioteca universal, com o objetivo de ter uma página na web para cada livro já publicado no mundo; e o Demand Progress, plataforma para obter conquistas em políticas públicas para pessoas comuns, através de campanhas online, contato com congressistas e advocacia em causas coletivas. Em 2008, lançou um manifesto no qual dizia: "A informação é poder. Mas tal como acontece com todo o poder, há aqueles que querem guardá-lo para si". Aaron foi enquadrado nos crimes de fraude eletrônica e obtenção ilegal de informações, entre outros delitos. Aaron seria julgado em abril. E, se fosse acatado o pedido da acusação, esta seria a sua punição: 35 anos de prisão e uma multa de 1 milhão de dólares. Aaron Swartz morreu antes, aos 26 anos. E, como disse Kevin Poulsen, na Wired: "O mundo é roubado em meio século de todas as coisas que nós nem podemos imaginar que Aaron realizaria com o resto da sua vida."

** no vídeo, excerto do documentário De Amor se Vive, realizado pelo cineasta italiano Silvano Agostini (1984) -  um resumo de entrevistas feitas com uma mãe, um transexual, um travesti, uma prostituta e um menino de 9 anos, Frank - cada um deles explicando sua forma de ver a vida, o amor, a ternura e a sensualidade. o mais surpreendente no relato de Frank, no trecho acima, além da sexualidade aparentemente precoce (humanos são seres sexuais - e as crianças não escapam disso, apesar da contemporânea idealização da infância e de preferirmos fechar os olhos a esta realidade da vida), é a ausência de temor, de repressão. Frank parece não sentir medo de suas emoções, do seu corpo, de sua natureza, do que as pessoas possam pensar ou fazer diante de seus atos e de suas declarações. uma vida rara, não contaminada pelo ego e eufemismos de que a vida é nociva ou com a necessidade desesperada de se sentir aceito. escrevo que 'parece não sentir medo' porque estou convencida que sim, que o conhece, que certamente já sentiu esta emoção, que sabe como ninguém onde colocar o medo: sob seu controle. por saber conviver de forma saudável com o medo que permite-se, que vive, que experimenta. e que nos perturba. porque viver a vida e o amor através do sexo é não só maravilhoso, mas uma forma de poder imensurável, é alcançar a verdadeira liberdade. por isso o sexo é tão mal visto pelo poder e proibido pelas instituições religiosas: é a revolução em sua forma mínima e embrionária. sexo é poder. mas tal como acontece com todo o poder, há quem queira guardá-lo exclusivamente para si.

***  o menino Frank e o jovem Aaron eram ternos, inocentes, plenos de amor e de coragem. simpatizamos com eles porque nos identificamos: estamos todos (muitos, incoscientemente) na conquista de nossa ternura e inocência, que em algum momento nos foi arrebatada. não sei onde a vida levou o menino Frank - temo saber. mas quando leio sobre Aaron Swartz, ele que acreditava tanto em mudar o mundo, é difícil não pensar: que mundo é esse que criamos onde jovens como Aaron e Frank são os raros?


[acima, trechos retirados do acachapante texto escrito por Eliane Brum para a revista Época, sobre a morte de Aaron Swartz. no título, frase de Carlos Drummond de Andrade, retirado do poema Os ombros suportam o mundo]

sábado, 12 de janeiro de 2013

A morte é um vento que leva tudo

   
 
  
 *




 

*Malária é um curta animado escrito e desenvolvido inteiramente no Brasil por Edson Oda (criação, direção e roteiro), Alexandre Tommasi (criação, produção e direção de arte) e Sergio Prado (direção de fotografia) - uma combinação original e criativa de diferentes técnicas de produção, como o origami, kirigami, lapso de tempo, ilustração nanquim, quadrinhos e cinema ocidental - como se estivéssemos frente à frente com uma HQ em 3D! ** no título, frase retirada do livro Contos de Enganar a Morte, escrito e ilustrado por Ricardo Azevedo - uma coletânea de  'causos' - narrativas populares sobre a inevitável hora das horas e os ardis inventados pelo sábio povo do interior para escapar da 'maledeta'. recomendo vivamente.

sábado, 5 de janeiro de 2013

Ler é sexy [4] - Marilyn Monroe

 
  
 



  • ela teve uma biblioteca pessoal de mais de 400 livros
  • adorava James Joyce, Walt Whitman e o poeta Heinrich Heine
  • Saul Bellow e Carl Sandburg foram seus heróis literários
  • Truman Capote e Isak Dinesen eram seus amigos
  • e foi casada com o dramaturgo Arthur Miller
  • inúmeras fotografias tiradas de Marilyn Monroe mostram que, mesmo antes do estrelato, ela já apreciava a companhia dos livros
  • era neles que buscava as respostas aos seus questionamentos íntimos,
  • além de serem refúgio e companhia fiel durante seus surtos de insônia.
  • pode parecer engraçado que a loira mais famosa e sexy do mundo apreciasse ler James Joyce
  • mas a literatura não era piada para ela
  • seu amor por livros era genuíno
  • muito além da aparente e desesperada necessidade de ser levada a sério.
  • o mito construido sobre si
  • - o da mulher imatura, emocionalmente frágil
  • mas absolutamente sedutora,
  • magnetizante, feminina e fatal
  • a deusa da beleza e do sexo implícito
  • - acaba por, a cada revelação, tornar-se ainda maior e intangível:
  • Marilyn a sensível
  • Marilyn a intelectual
  • Marilyn a curiosa
  • Marilyn a bombshell
  • Marilyn que nunca acaba
  • Marilyn, para sempre.


*








*
dados retirados do livro Fragmentos (2011) - uma coletânea de notas, cartas e diários escritos pela atriz. ** foi neste livro que encontrei  a melhor definição do dilaceramento de Marilyn no curso de sua consolidação como deusa - escrita pelo seu último marido, o escritor Arthur Miller: "Para sobreviver, seria preciso que ela fosse mais cínica, ou, pelo menos, mais próxima da realidade. Em vez disso, ela era uma poeta na esquina, tentando recitar seus versos a uma multidão que lhe arrancava as roupas." *** a relação dos livros da biblioteca particular de MM pode ser conferida aqui: http://www.librarything.com/profile/marilynmonroelibrary