domingo, 30 de dezembro de 2012

A solidão derrotada


"Via-se metade ao espelho porque se via sem mais ninguém, carregado de ausências e de silêncios como os precipícios ou os poços fundos. Para dentro do homem era um sem fim, e pouco ou nada do que continha lhe servia de felicidade. Para dentro do homem o homem caía."

Em O filho de mil homens (escrito pelo angolano Valter Hugo Mãe) todas as personagens começam assim, a cair para o poço sem fundo delas mesmas, cercadas de solidão por todos os lados. Porém, a cada página, elas se vão entrelaçando entre si, encontrando umas nas outras o fio da sua própria meada, a continuação da sua margem. E as ilhas que, no início eram gente, vão-se juntando até formarem um continente.

"Farto como estava de viver sozinho, aprendera que a família também se inventava". 

O livro conta a história de Crisóstomo, o pescador que, aos quarenta anos, "assumiu a tristeza para reclamar a esperança". E é nesta pedra de toque, que aquilo que tinha tudo para ser um livro triste torna-se uma história luminosa, um relato de oportunidade e expectativa. Um pescador como aquele outro, de homens e mulheres. Na sua rede: uma mulher, um filho, uma mãe, um tio, uma criança, um velho; todos diferentes, todos perfeitos nas suas imperfeições, todos a dar o passo que atravessa a ponte e os conduz ao outro. Um encontro que é também a própria felicidade - "ser o que se pode é a felicidade".

"É isso o amor. Uma predisposição natural para se favorecer alguém. Ser, sem sequer se pensar, por outra pessoa". 
 
O filho de mil homens é um regalo para os olhos, uma obra profundamente poética e encantada. Uma ode à fraternidade e à perseverança. Como escreve o autor sobre Isaura, que "amava sem ter, porque o amor era espera e ela, sem mais nada, apenas esperava. A Isaura sabia que amava alguém por vir, amava uma abstração de alguém no futuro. Ela esperava o futuro, e esperar era já um modo de amar. Esperar era amar".

"O Crisóstomo disse ao Camilo: todos nascemos filhos de mil pais e de mais mil mães, e a solidão é sobretudo a incapacidade de ver qualquer pessoa como nos pertencendo, para que nos pertença de verdade e se gere cuidado mútuo. Como se os nossos mil pais e mais as nossas mil mães coincidissem em parte, como se fossemos por aí irmãos, irmãos uns dos outros. Somos o resultado de tanta gente, de tanta história, tão grandes sonhos que vão passando de pessoa a pessoa, que nunca estaremos sós".


*










* não sei se foi a sorte, o destino ou a coincidência que depositou em minhas mãos O filho de mil homens, neste mês de dezembro. mas foi, certamente, uma espécie de magia que brindou-me com as palavras que tenho dificuldade em encontrar sempre que a intenção é celebrar e agradecer a amizade e os amigos que me fizeram e me constroem. mais uma vez, os escritores falaram por mim. este agradecimento também vai para vocês, caríssimos ** "tem gente que é só passar pela gente que a gente fica contente. tem gente que sente o que a gente sente e passa isto docemente. tem gente que vive como a gente vive, tem gente que fala e nos olha na face, tem gente que cala e nos faz olhar. toda essa gente que convive com a gente leva da gente o que a gente tem e passa a ser gente dentro da gente. um pedaço da gente em outro alguém." (Fernando Sabino, in O encontro marcado) *** na imagem, o escritor Valter Hugo Mãe,carta escrita especialmente para seus leitores brasileiros presentes na Flip de 2011. **** título inspirado em frase do poema Amigo, de Alexandre O'Neill:  

Mal nos conhecemos 
Inauguramos a palavra amigo.
Amigo é um sorriso 
De boca em boca, 
Um olhar bem limpo, 
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece, 
Um coração pronto a pulsar 
Na nossa mão!

Amigo (recordam-se, vocês aí, 
Escrupulosos detritos?) 
Amigo é o contrário de inimigo!

Amigo é o erro corrigido, 
Não o erro perseguido, explorado, 
É a verdade partilhada, praticada.

Amigo é a solidão derrotada!
Amigo é uma grande tarefa, 
Um trabalho sem fim, 
Um espaço útil, um tempo fértil, 
Amigo vai ser, é já uma grande festa! 

Domingo, às 16h, no Harlem

  
  • em 1995, Marjorie Eliot viu morrer seu filho, Phillip
  • era um domingo à tarde
  • ele, músico de jazz; ela pianista
  • desde então, semanalmente, Marjorie abre sua casa para os amigos de seu filho seguirem tocando 
  • sempre aos domingos à tarde, ininterruptamente
  • faça chuva ou faça sol e sem férias! 
  • os convidados incluem vizinhos, nova iorquinos e turistas de todos os lugares
  • sem necessidade de convite ou entrada:
  • o show é íntimo, ao vivo e completamente free!
  • uma experiência única - acompanhada de refresco e biscoitos carinhosamente servidos no intervalo.
  • a pequena sala de seu apartamento tem o espaço exato para seu piano e os músicos que a acompanham. 
  • mais 50 cadeiras, devidamente arrumadas com almofadas coloridas.
  • recentemente, Marjorie Eliot's perdeu outro filho, Michael
  • sem intervalo, seguiu com as sessões dominicais
  • diz que encontra conforto na música - e nas pessoas. 
  • "well, mais que a música, são as pessoas que me estimulam a continuar, as pessoas incríveis que vêm aqui. 
  • meus filhos, Michael e Phil se foram,  
  • eles eram toda minha família,
  • mas as pessoas que vêm aqui escolheram a mim para fazer parte da vida deles".
  • o apartamento fica em um edifício histórico, no Harlem, NY
  • da rua, nas escadas do edifício, ouve-se a música
  • mas os vizinhos não parecem se importar
  • "no começo, nos primeiros dias, eles não tinham certeza do que estávamos fazendo aqui", diz Marjorie
  • "mas agora eles parecem se orgulhar de viver em um local preenchido pela boa música".

  • anota o serviço:
  • Jazz na Sala da Marjorie Eliot’s
  • Every Sunday from 4 to 6 p.m.
  • 555 Edgecombe Avenue, Studio 3F, 
  • 212.781.6595. 
  • entrada gratuita. não é necessário reservar; assentos para os que primeiro chegarem.
















*








* tem feito tanto calor que nem penso. quando vislumbro uma ideia no saara que se tornou minha mente, só penso em água, gelo e refresco. repetidamente, feito obsessão. agora há pouco enxerguei uma miragem. uma imagem com pinta de déjà vu: um imenso copo de ginger ale, com a mesma picância e refrescância sentida pela primeira vez, em um verão longínquo e inesquecível em NY. alguns anos depois, aprendi a receita e ousei fazer. quem me ensinou a chamava de gengibirra, ou cerveja de gengibre, porque leva fermento - e a bebida é um fermentado de gengibre, esclareço - mas com um teor de álcool tão bobo, que é sugerida pra crianças em substituição aos refrigerantes venenosos vendidos em supermercados. aliás, a melhor receita de ginger ale que encontrei na net vem justamente de um site de alimentação natural para crianças, o Crianças na Cozinha  (recomendadissímo! além do fato da blogueira - hoje moradora de terras paulistanas, ser minha conterrânea - é uma mãe zelosa e pesquisadora incansável na área de nutrição e gastronomia infantil). a única diferença entre a receita que costumo fazer e a dela é que uso fermento orgânico (de pão, sabe?), mas estou ansiosa pra experimentar a sugerida por ela, mais trabalhosa, com levedo (soro) de leite. para adoçar uso o melado, o que deixa o drink com um suave retrogosto de caldo de cana, que eu aprecio muito. tem quem faça diferente, acrescentando sucos de frutas, água tônica e até cachaça... as variáveis parecem ser infinitas (dá um giro na web e verifica), mas gosto de pensar no ginger ale como uma bebida fresca, não alcóolica e caseira (um luxo, se compararmos com as versões industrializadas, simplistas e monótonas) que combina perfeitamente com festas de família, calor e alegria. ou seja, a cara desta época do ano! deu vontade? eu também! nem consigo esperar o tempo de fermentação da bebida - que leva, em média, 48 horas. por isso vou testar uma versão rápida, pra celebrar o ano novo (que chega em poucas horas) ensinada pela fotógrafa Cris Veit. se é uma boa receita, conto depois, mas garanto que não vou esquecer de brindar antes de entornar o primeiro copo: a você que me lê, a você, a você!

Ginger Ale

Ingredientes


Um pedaço de 6 cm de gengibre fresco ralado
1 litro de água mineral sem gás
1 litro de água mineral com gás
1 colher de chá de grãos de pimenta do reino
2 e 1/2 xícaras de açúcar
12 limas da pérsia

Preparo

Coloque em uma panelinha 2 xícaras de água sem gás, o gengibre ralado e os grãos de pimenta. Deixe ferver por 4 minutos. Espere esfriar um pouquinho e coe o líquido em uma jarra grande. Junte o açúcar, o suco de lima da pérsia também coado e leve para gelar. Acrescente o restante da água sem gás + o litro de água com gás apenas na hora de servir e em copos com muito gelo.


** tem feito tanto calor que não consegui escrever. deixei a vida me levar e o natal passou sem textos alusivos. o espírito natalino, entretanto, não deve ter apreciado a lacuna e compareceu, não faz muito, com a inspiração em forma de uma vaga lembrança: a cozinha de Marjorie Eliot. que não conheço, fisicamente. somente por fotos - e pelas imagens, como estas do vídeo acima. um link esquecido, esperando nos rascunhos do blog desde 2009, quando conheci a história desta pianista negra do Harlem, que abre sua casa todos os domingos para desconhecidos ouvirem jazz. sem nenhuma intenção. sem esperar reconhecimento. sem outra expectativa que a de partilhar música. como se não estivesse em uma das maiores cidades do mundo. como se não morasse em um país cheio de malucos paranóicos assassinos de criancinhas em escolas primárias. como se ela não fosse negra e idosa. como se ela não fosse sozinha. a senhora Eliot não convida celebridades. não cobra entrada. não serve champagne ou whisky (mas suco de maçã e ginger ale!). a sábia senhora Marjorie Eliot acredita que "onde há música não pode haver coisa má" e confia, destemida, na vida e nas pessoas que vêm para perto de si. porque existe mais bondade do que maldade no mundo. porque a grande maioria de nós é fruto do amor e da esperança. e mesmo quando nos falta amor e esperança é a memória destes sentimentos que nos impele para a vida e para o outro, em busca de amor e de esperança. o natal passou, mas o espírito natalino fez-me uma visita, há pouco. veio em forma de lembrança. de uma cozinha humilde aberta para o mundo. pequena, mas calorosa. como são as cozinhas que habitam nossa memória humana. espaços luminosos onde se dá o verdadeiro milagre da multiplicação: o amor e a esperança a renovarem-se e nutrirem toda gente. nesta cozinha - que em outros tempos foi construída em um estábulo, ao redor de uma manjedoura - é onde vive o natal. 

sábado, 22 de dezembro de 2012

Aprendiz do Verão


O Verão sorri, o Verão sabe 
abraça-me, despudoradamente
e inquieta mente
lenta mente
gentil mente 
amorosamente, 
aquece a areia em que me entrego 

O Verão desnuda a dúvida.
Exímio, faz dançar a pele nua
salga o tempo, eterniza os dias
espalha as memórias com brisa
diz à lua para esperar e ao sol pra se demorar
arrasta-me com seus dedos quentes
devasta-me com a língua lisa e morna 
abre em mim mil sorrisos, portas, pernas
e faz jorrar meus olhos de luz

Ao longo do ano eu o espero
saudosa, desaprendida
concubina despida
e é quando me percebe rendida
que arma a despedida:
sua última carícia chega fria,

e prepara-me para a queda* 

[*fall].



*







* uma adaptação muito livre da letra de The Summer Knows, escrita pelo casal Marilyn e Alan Bergman para a irrepreensível composição de Michel Legrand - tema do filme Summer of '42 (Robert Mulligan, 1971). ** apesar de Elis, apesar do francês, ainda acho que quem melhor soube contar este amor impossível, cantou-a em inglês (na língua da rainha, verão é substantivo feminino, que tal?)  *** a letra da música, em todo seu esplendor:
 
The Summer Knows

The summer smiles, the summer knows
And unashamed she sheds so close
The summer smooth, the restless kind
And lovingly she warms the sand on which you lie

The summer knows, the summer's wise
She sees the doubt within your eyes
And so she takes her summer times
Tells the moon to wait and the sun to linger
Twists the world from her summer finger
Lets you see the wonder of it all

And if you learned your lesson well
There's little more for her to tell
One last caress, it's time to dress for fall
 

sábado, 15 de dezembro de 2012

A arte de viver é a arte de acreditar em milagres


Era uma noite de terça-feira insuspeita em Copacabana. No fim daquele dia, um grupo de frequentadores do sebo Baratos da Ribeiro faria exatamente o que faz há cinco anos: se espremeria entre as prateleiras abarrotadas da livraria para mais um encontro do Clube da Leitura, evento quinzenal em que leem trechos de livros e trocam impressões sobre contos próprios. Quando chegou a sua vez na roda, o dono do sebo e fundador do clube, Maurício Gouveia, tirou da gaveta um livro que guardava há dez anos escondido no acervo: um exemplar em italiano de "Nove contos", do escritor americano J.D. Salinger.

Não tinha coragem de vendê-lo. Com as bordas amareladas e as páginas carcomidas, aquele "Nove racconti" guardava uma dedicatória em português na página de rosto que Maurício considerava mais bonita do que todo o livro do autor do clássico "O apanhador no campo de centeio". Um homem comum — que poderia ser um médico, um vendedor de sapatos ou um trapezista de circo — declarava seu amor a uma mulher, em Milão, em 26 de dezembro de 1966. Maurício leu a dedicatória enorme, que começava com a frase "De tudo que vem de você, permanece em mim uma vontade de sorrir" e se encerrava com a oração "a vida é um contínuo chegar de esperanças". Ao final, subiu o tom para ler o nome do santo: Sylvio Massa de Campos.

Foi quando um dos frequentadores do clube soltou um "opa!". O jornalista George Patiño conhecia a família Massa, da qual Sylvio era o patriarca. Ele não vendia sapatos, trabalhava em circo ou morava em Milão: o matemático e escritor Sylvio Massa de Campos estava vivo, trabalhara a vida toda na Petrobras, tinha 74 anos e morava logo ali, no Leblon.

— Tem certeza? — perguntou Maurício.
— Trago ele aqui no próximo encontro — prometeu George.

Feito. No dia 6 de novembro, um senhor de cabelos brancos, sorriso fácil e porte altivo entrou no sebo acompanhado de duas filhas e três netos. Emocionado, recebeu das mãos de Maurício o livro perdido. Releu a dedicatória em voz alta, com pausas longas entre uma frase e outra, o que só aumentava o suspense na livraria, entrecortado pelo ruído dos netos inquietos. Depois de ser longamente aplaudido, contou aos novos colegas a história por trás daquela mensagem.
Em 1966, ele fazia mestrado em Matemática em Milão com uma bolsa do governo brasileiro. Lá, conheceu uma italianinha de nome Febea, que tinha concluído os estudos em Literatura em Londres, e acabava de retornar à Itália. Quando ela comentou que conhecia José Lins do Rego e João Cabral de Melo Neto, e que adoraria aprender português para ler Guimarães Rosa, Sylvio se apaixonou na hora: apesar de trabalhar com algoritmos, era na literatura que descansava seus teoremas. Prestes a terminar a pós-graduação, no entanto, logo voltaria ao Brasil. O amor foi construído à distância.

— Nosso namoro durou um ano, 136 cartas, nove livros, dois telegramas e um telefonema, contou Sylvio, para suspiro coletivo da plateia, e espanto das filhas, que não conheciam todos aqueles números. — Naquele tempo, dar um telefonema era uma fortuna. Esta dedicatória escrevi no dia do meu aniversário, já doido por ela. Eu nem sei como perdi o livro, acho que foi numa mudança nos anos 80.

Um ano depois, Febea veio morar no Brasil, e Sylvio montou um apartamento no Méier para ela. Tiveram duas filhas, Isabella e Gabriella — que a essa altura se debulhavam em lágrimas na livraria — e viveram felizes para sempre. Até que um câncer levou Febea aos 41 anos de idade. Sylvio nunca mais se casou.

— A arte de viver é a arte de acreditar em milagres, disse o poeta italiano Cesare Pavese, e se hoje eu estou aqui é porque ele está certo. Febea foi a pessoa que eu amei mais profundamente em toda a minha vida. E ela está presente aqui, nessas cinco pessoas que fizemos, nossas duas filhas e três netos. Esse é o milagre — declarou Sylvio, lembrando, ao final, uma frase que ouvira do neto quando ele tinha 4 anos, e que levava como mantra de vida: "Vovô, nada é grave."



*









* nada é grave, mas certas coisas nos chegam assim agudas, fininhas feito agulha cirúrgica, estalando cristais, rochas e ossos, fazendo vibrar até o já seco sangue endurecido dos agnósticos. ** na imagem, feita por Leonardo Anversa, da Agência Globo, o matemático Sylvio Massa segura porta retrato com foto de sua esposa Febea, quando jovem *** o texto acima é parte de uma matéria do Jornal O Globo e não termina aí - revela ainda mais surpresas esquecidas em dedicatórias de livros. *** dica da Carol Cesar, daqui, do Jornal Página 3.*** update! estimulada pela curiosidade do leitor amigo, trouxe para cá a dedicatória em sua versão integral, escrita por Sylvio de Campos em 66: "De tudo o que vem de você, permanece em mim uma vontade de sorrir. De todos os seus sorrisos, permanece em mim a sua tristeza. De todos os seus enganos, guardo o seu desejo de acertar. De todos os seus acertos, imagino a indiferença dos outros em não reconhece-los. Imagino também a incapacidade deles para julgar o engano e elogiar o acerto. Nem um nem outro é passível de julgamento. Você é que percebe o que reflete nos olhos dos outros! Quando enganas, sei que queres buscar a verdade. Para mim isto é suficiente. Quando dizes a verdade, não lhe creem. É o preço que o mundo oferece. Me sinto capaz de distingui-los em silêncio. Quando encontrar o desespero, pensa na tua tristeza, nos teus enganos, na indiferença dos outros, nas mentiras do mundo, nas verdades buscadas. Corres o perigo de viver neste círculo desumano, para concluir que, talvez, nada vale a pena. É preciso que tu olhes para os sãos de corpos e espírito que amam para depois errar e se desesperar mais tarde, porque um dia se recordam que um dia foram puros de espírito. Aqueles que já erraram e voltam a receber, um dia, a luz do sol, ou uma gota de chuva, não têm mais medo do erro, nem a recordação de um dia havê-los cometido. O mundo agora pode surgir com sua bela singeleza. As flores têm agora o perfume original de sua castidade. A vida é um contínuo chegar de esperanças."

Os meses oceano

 
E por vezes as noites duram meses 
E por vezes os meses oceanos 
E por vezes os braços que apertamos 
nunca mais são os mesmos.
E por vezes encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes 
ao tomarmos o gosto aos oceanos 
só o sarro das noites não dos meses 
lá no fundo dos copos encontramos.
E por vezes sorrimos ou choramos 
E por vezes por vezes ah por vezes 
num segundo se evolam tantos anos. 

David Mourão-Ferreira



*








* dezembro, anualmente, chega feito oceano. olho da praia, desde o novembro, e já avisto os cardumes, os barcos em férias, os albatrozes... vêm num crescendo, se avolumando, aos berros, aos solavancos. confiro os ventos, aufiro as marés e me lanço: nem sempre dá pé, o mar não é manso. sou d'água, penso com bem força, e avanço. passa janeiro, fevereiro...e só quando março me encontra é que descanso.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Só o humor salva [3]



"As câmeras de Capa provocaram enorme rebuliço. As mulheres o chamavam aos gritos enquanto ajeitavam seus lenços e suas blusas, tal como as mulheres fazem em qualquer parte do mundo quando vão ser fotografadas.

Havia um mulher em especial, de rosto cativante e riso contagioso, que foi escolhida por Capa para um retrato. Ela era a mulher mais espirituosa do vilarejo.

- Não apenas sou uma trabalhadora de mão cheia, como já enviuvei duas vezes e agora, os homens morrem de medo de mim - E ela brandiu um pepino  diante das lentes de Capa.

- E você toparia casar-se comigo? retrucou Capa.

Ela jogou a cabeça para trás e deu uma sonora gargalhada.

- Olhe aqui, disse ela, se Deus tivesse consultado o pepino antes de fazer o homem, não haveria tantas mulheres infelizes no mundo."





*










* durante quarenta dias, entre agosto e setembro de 1947, John Steinbeck e Robert Capa viajaram pela Rússia (mais precisamente, Kiev, Stalingrado e os balneários da Georgia, além da capital Moscou). Steinbeck já era um escritor respeitado, vencedor de um prêmio Pulitzer (ele viria a ganhar o Nobel em 1962). Capa, um jornalista fotogáfico mais do que experimentado em reportagens deste tipo. Ambos simpatizantes do socialismo, como eram boa parte dos intelectuais no pós-guerra. Steinbeck e Capa registraram o dia a dia da população, conversaram com pessoas de todos os tipos, especialmente as simples, das ruas aos campos. Capa fez cerca de 4000 fotografias. O livro inclui uma centena delas. Fotos de paz e não de guerra. Fotos que contam uma história paralela ao texto de Steinbeck - que, por sua vez, é delicioso, bem humorado e sempre vivo, como se ainda estivessem lá e todos estes anos não já fossem passado. ** as fotos, extraídas do livro, são da mulher citada por Steinbeck. (sem o pepino, vai saber). *** amados leitores do sexo masculino, saibam que não considero o pepino a solução. aliás, a guerra dos sexos, que tanta saliva, tinta e sangue já desperdiçou pelas eras afora, existe tão somente pelo fato de as tampas dos vidros de pepino serem hermeticamente fechadas e portanto, demasiado apertadas. se as tampas abrissem sem esforço, as vagas de estacionamento fossem amplas, as gramas se autocortassem, as cuecas se autolavassem e as toalhas se autopendurassem viveríamos felizes para sempre. ou ou ou estou enganada? 

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Cortina de Fumaça [6] - books and cigarettes

 Alejandro Zambra 

Tampouco podia ler sem fumar. Por isso nunca fui capaz de ler ou escrever em aviões e ônibus. Já fiquei bastante tempo sem escrever, mas não lembro de ter lido tão pouco como nesse verão. Era algo de que eu realmente precisava, pois, como eu disse, eram atividades muito ligadas: lá pelos onze ou doze anos eu já havia me tornado, quase simultaneamente, um leitor voraz e um fumante muito promissor.
Nos primeiros anos de faculdade eu logo construí um vínculo mais forte entre a leitura e o tabaco. Nessa época o poeta Kurt Folch lia Heinrich Böll e eu, que sempre imitava Kurt, fui atrás do Pontos de vista de um palhaço, belo romance em que os personagens fumam o tempo todo, acho que em todas as páginas, ou pelo menos em uma página sim, outra não. E cada vez que eles acendiam um cigarro eu fazia o mesmo, e era como se eu estivesse participando do romance. Talvez seja a isso que os críticos literários se referem quando falam do leitor ativo, pensei, um leitor que sofre junto com os personagens e se alegra quando eles ficam felizes, e que sobretudo fuma quando eles fumam.
Continuei lendo Böll com a certeza de que cada vez que alguém fumasse nos seus livros eu também o faria. Acho até que em Sinuca às nove e meia e em E não digo nem uma palavra (como esse é bom), e em Casa sem dono (que triste), os romances de Böll que li em seguida, se fumava mais do que emPontos de vista de um palhaço. Foi aí que me tornei um fumante compulsivo. Para ser mais preciso, um fumante profissional. (Não seria estúpido a ponto de dizer que virei fumante “por culpa” do Heinrich Böll. Não: foi graças a ele).
Quando deixei o cigarro lembrei, com certo temor, de uma conversa que tive há uns dois anos com meu amigo Andrés Braithwaite (um dos fumantes mais dedicados que conheço), no período em que ele havia deixado nosso nobre vício. Lembrei que em certo momento Andrés me disse, desolado: “ Agora tudo ficou infinitamente mais chato”. Me falou especialmente sobre a leitura: disse que sem fumar nenhum livro era bom, que não conseguia achar graça na leitura. Meses depois, quando o vi de novo, estava rejuvenescido, mais bonito. Ele acendeu um cigarro e, olhando-me nos olhos, disse: "Estou reabilitado". Coincidentemente, meu amigo falou nessa tarde sobre autores fabulosos que tinha descoberto, e romances desconhecidos e poemas geniais.
Não vou explicar aqui os motivos que me fizeram parar de fumar. Basta dizer que têm a ver com covardia e ambição. De repente descobri que queria viver mais. Que coisa mais absurda essa: querer viver mais. Como se a gente fosse, por exemplo, feliz. Enfim. Deixei de fumar e na semana seguinte, quando sentei em frente ao computador para escrever minha coluna, não consegui. Fiquei dez horas tentando me concentrar. Esperei até o último minuto, na ilusão de que, aos 47 do segundo tempo, aconteceria alguma mágica, mas nada. Muito envergonhado, avisei meus editores, que foram bastante compreensivos. Sinceramente pensei que nunca mais escreveria ou leria nenhuma linha. Mas, como se vê, essa história termina bem. Por sorte, aos poucos consegui. E estou orgulhoso. Voltei a ler e escrever. E a fumar.

Alejandro Zambra, Eu fumava muito bem



Heinrich Böll

Clarice Lispector

William Burroughs

 Vladimir Mayakovsky
  
John Updike

Virginia Woolf

Umberto Eco

Charles Bukowski

Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir

Mark Twain

Marguerite Duras

Patricia Highsmith 




*








* minha coleção de portraits de escritores acompanhados de seus cigarros é, sem 'fumaça' de dúvida, a mais volumosa. não à toa: escribas e tabaco, historicamente, mantêm uma relação tão estreita quanto com a tinta e papel (outros estimulantes também são comuns, como o álcool e café - para citar os legais - mas nenhum deles parece ser tão presente quanto o fumo). não por acaso, o tabaco "introduziu-se" no mundo pelas mãos dos xamãs nativos americanos. o cachimbo sagrado, ainda hoje utilizado como um canal para experiência visionária e orientação espiritual, funciona com os mesmos fins para os escritores, que buscam por entre a fumaça expelida de seus cigarros as musas inspiradoras para seus textos. e reza a lenda que o sistema indígena americano de comunicação inter-tribal, conhecido como sinais de fumaça, teve a sua origem nos pictogramas aéreos formados por redemoinhos de vapor de tabaco vistos durante sessões de fumo. e não são espécies de letras os padrões fugazes e espectrais da fumaça dos cigarros? ** mais fotos de escritores pitando? dá um click no link Cortina de Fumaça [5] - tem Oscar Wilde, Henry Miller, Zygmunt Bauman, Roberto Bolanos, Leonard Cohen, J.D. Salinger, Mário Quintana, Nelson Rodrigues, Caio Fernando de Abreu, Julio Cortázar e Albert Camus *** faltou seu escritor predileto? aguarde pelos próximos posts, que esta série é quase infinita...

Da série Verdades Indissolúveis - sobre o essencial, tão escondido na obviedade ao nosso redor


Há dois peixes jovens nadando ao longo de um rio, e eles por acaso encontram um peixe mais velho nadando na direção oposta, que pisca para eles e diz, "Bom dia, rapazes, como está a água?". E os dois peixes jovens continuam nadando por um tempo, e então um deles olha pro outro e diz, 
"Que diabos é água?".

Se você está preocupado pensando que eu estou planejando me apresentar aqui como o peixe velho e sábio explicando o que é água, por favor não fique. Eu não sou o peixe velho e sábio. O ponto imediato da história dos peixes é que as realidades mais óbvias, ubíquas e importantes são frequentemente as mais difíceis de se ver e discutir. Declarada como uma frase, é claro, isso é só um lugar-comum banal – mas o fato é que, nas trincheiras diárias da existência adulta, lugares-comuns banais podem ter importância de vida ou morte.
É claro que o principal requerimento de discursos de formatura como esse é que eu devo falar sobre o significado da sua educação de Ciências Humanas, tentar explicar por que o diploma que você acabou de receber tem algum valor humano real ao invés de apenas compensação material. Então vamos falar do maior clichê do gênero do discurso de formatura, que é que a educação de ciências humanas não tem o propósito de te encher de conhecimento, mas sim de ensiná-lo a pensar. Aqui vai outra historinha didática:
Dois caras estão sentados, em um balcão de bar, em uma região remota do Alaska. Um dos caras é religioso, o outro é ateu, e os dois estão discutindo sobre a existência de Deus com a intensidade especial que vem depois da quarta cerveja. E o ateu diz: "Olha, não é como se eu não tivesse razões verdadeiras pra não acreditar em Deus. Não é como se eu nunca tivesse experimentado essa coisa toda de Deus e oração. Mês passado uma nevasca terrível me pegou longe do acampamento, eu tava completamente perdido, e não conseguia ver nada, e tava 25 graus negativos, então eu tentei: eu caí de joelhos na neve e gritei 'Ó Deus, se existir um Deus, eu tô perdido nessa nevasca, e eu vou morrer se você não me ajudar.'" E agora, no bar, o cara religioso olha pro ateu confuso. "Bem, então você deve acreditar agora", diz ele. "Afinal, aqui está você, vivo." O ateu rola os olhos. "Não, cara, o que aconteceu é que dois esquimós por acaso apareceram por lá e me mostraram o caminho do acampamento."
É fácil fazer uma análise literária dessa história: A mesma exata experiência pode significar duas coisas completamente diferentes para duas pessoas completamente diferentes, considerando os diferentes modelos de crença e as diferentes formas de construir significado de uma experiência. Porque nós valorizamos a tolerância e diversidade de crença, não queremos na nossa análise literária afirmar que a interpretação de um cara é verdadeira e a interpretação do outro cara é falsa ou ruim. O que não tem problema, só que nós também acabamos nunca falando sobre de onde vêm esses modelos e crenças diferentes.
Quero dizer: de onde eles vêm de dentro dos dois caras? É como se a orientação de mundo mais básica de uma pessoa e o significado de sua experiência, fossem de alguma forma simplesmente impressos nos genes, como altura ou tamanho do sapato – ou automaticamente absorvidos da cultura, como linguagem. Como se a forma em que construímos significado não fosse uma questão de escolha pessoal e intencional. Além disso, há toda a questão de arrogância. O cara não-religioso está completamente certo na sua rejeição da possibilidade de que os esquimós tiveram qualquer coisa a ver com sua oração e pedido de ajuda. Verdade, existem também muitas pessoas religiosas que parecem arrogantes e certas de suas próprias interpretações. Elas provavelmente são muito mais repulsivas do que os ateus, pelo menos para a maioria. Mas o problema do religioso dogmático é exatamente o mesmo do descrente da história: certeza cega, uma mente fechada que representa um aprisionamento tão completo que o prisioneiro nem sabe que está encarcerado.
Então, ensinar como pensar significa: ser um pouco menos arrogante; ter um pouco de consciência crítica sobre mim e minhas certezas. Porque uma grande porcentagem das coisas sobre as quais eu costumo automaticamente ter certeza é, na verdade, totalmente errada ou ilusória. Eu aprendi isso do jeito difícil, e eu aposto que vocês também vão.
Aqui vai um exemplo de algo completamente errado que eu costumo automaticamente ter certeza: tudo na minha experiência apóia minha crença profunda de que eu sou o centro absoluto do universo, a pessoa mais real, vívida e importante que existe. Nós raramente falamos sobre esse tipo de egocentrismo natural e básico, porque ele é tão socialmente repulsivo, mas é basicamente o mesmo para todos nós, no fundo. É a nossa configuração padrão, impressa nos nossos circuitos desde o nascimento. Pense nisso: você nunca teve uma experiência da qual você não foi o centro absoluto. O mundo como nós o vemos está bem na sua frente, ou atrás de você, ou à sua esquerda ou à sua direita, na sua TV, no seu monitor, ou o que for. Os pensamentos e sentimentos de outras pessoas precisam ser comunicados pra você de alguma forma, mas os seus próprios são tão imediatos, urgentes, reais… você entendeu.
Mas por favor, não se preocupe pensando que eu estou me preparando pra pregar pra você sobre compaixão ou desprendimento ou as supostas “virtudes”. Isso não é uma questão de virtude, é uma questão de eu escolher fazer o trabalho de alterar ou me livrar da minha configuração padrão natural, que é ser profundamente e literalmente egocêntrico, e ver e interpretar tudo pela lente do eu. Pessoas que conseguem ajustar sua configuração padrão natural dessa forma são geralmente descritas como “bem ajustadas”, o que eu lhe sugiro que não é um termo acidental.
Como vocês devem saber, é extremamente difícil se manter alerta e atento, ao invés de se hipnotizar pelo monólogo constante dentro da sua próprio cabeça (pode estar acontecendo agora). Vinte anos depois da minha gradução, eu cheguei à conclusão de que o clichê sobre a educação de Humanas sobre te ensinar como pensar é na verdade uma simplificação de uma idéia muito mais profunda e séria: aprender como pensar significa como exercer controle sobre como e o que você pensa. Significa estar ciente e consciente o suficiente para escolher no que você presta atenção e escolher como você constrói significado de uma experiência. Porque se você não exercitar esse tipo de escolha na vida adulta, você está lascado.
Pense no velho clichê sobre a mente ser "um ótimo servo mas um terrível mestre." Esse, como vários outros clichês, tão bobo e broxante na superfície, na verdade expressa uma grande e terrível verdade. Não é mera coincidência que adultos que se suicidam com armas de fogo quase sempre atiram na cabeça. Eles atiram no terrível mestre. E a verdade é que a maioria desses suicidas estão mortos muito antes de puxarem o gatilho. E eu sugiro que esse é o verdadeiro valor da educação de Humanas: como evitar viver sua confortável e próspera vida adulta morto, inconsciente, um escravo da sua cabeça e do padrão natural da sua configuração de ser unicamente, completamente, imperialmente sozinho, dia após dia. Isso pode soar como hipérbole ou baboseira abstrata. Vamos deixar mais concreto.
O fato é que vocês jovens graduados não fazem idéia do que realmente significa "dia após dia". Há por acaso partes enormes da vida adulta americana sobre as quais ninguém fala nesses discursos de formatura. Uma dessas partes envolve tédio, rotina e frustrações triviais. Seus pais vão saber muito bem do que eu estou falando.
Por exemplo, digamos que é um dia comum, e você acorda de manhã, e você vai pro seu trabalho exigente, e você trabalha duro por nove ou dez horas, e no fim do dia você está cansado e estressado, e tudo que você quer fazer é ir pra casa e jantar e talvez relaxar por algumas horas e então cair na cama cedo porque você tem que acordar no dia seguinte e fazer tudo de novo. Mas aí você lembra que não tem comida em casa – você não teve tempo de fazer compras essa semana, por causa do seu trabalho exigente – e então agora, depois do trabalho, você tem que entrar no seu carro e dirigir até o supermercado. É o fim do expediente, e o tráfego está horrível, então chegar no lugar demora muito mais do que deveria, e quando você finalmente chega lá, o supermercado está muito cheio, porque, é claro, é a hora do dia que todas as outras pessoas com emprego também tentam espremer um tempo pra fazer compras, e a iluminação da loja é fluorescente e medonha, e no som toca algum pop corporativo ou Muzak que destrói a alma, e é basicamente o último lugar que você quer estar. Mas você não pode entrar e sair rapidamente: você tem que vagar pelos corredores lotados dessa loja enorme e exageradamente iluminada para achar as coisas que você quer, e você tem que manobrar o seu carrinho de compras enferrujado por todas essas outras pessoas cansadas e apressadas que também empurram carrinhos, e é claro que também estão lá as pessoas idosas se movendo num ritmo glacial e as pessoas espaçosas e as crianças que bloqueiam os corredores e com as quais você tenta ser educado quando pede para elas deixarem você passar – e finalmente, você pega tudo que precisa pro jantar, só que agora não tem caixas abertos suficientes apesar de ser a correria do fim do dia, então a fila do caixa está incrivelmente longa, o que é estúpido e irritante, mas você não pode despejar sua fúria na moça agitada trabalhando no caixa, que está sobrecarregada num emprego cujo tédio diário e insignificância ultrapassam a imaginação de qualquer um de nós nessa faculdade prestigiada.
De qualquer forma, você finalmente chega na frente do caixa, e paga pela sua comida, e espera receber seu cartão autenticado pela máquina, e então desejam-lhe "um bom dia" numa voz que é a absoluta voz da morte, e então você tem que levar seus sacos de plástico frágil no seu carrinho através do estacionamento cheio, esburacado e sujo, e você tenta colocar os sacos no seu carro de forma que tudo não caia das sacolas e role pelo seu porta-malas no caminho para casa, e então você tem que dirigir para casa no tráfego lento de hora do rush, cheio de SUVs e picapes, etc, etc.
O que é frustrante nesse tipo de situação é quando entra o trabalho de escolher. Porque os engarrafamentos e corredores lotados e longas filas do caixa me dão tempo para pensar, e se eu não tomar uma decisão consciente sobre como pensar e no que prestar atenção, eu vou ficar enfezado e miserável toda vez que eu for comprar comida, porque minha configuração padrão natural é a certeza de que situações como essa são na verdade só sobre mim, sobre minha fome e meu cansaço e meu desejo de chegar em casa, e vai parecer que todos os outros estão no meu caminho, e quem é esse povo, mesmo? E olha o quão repulsivo é boa parte deles, e como aqui na fila do caixa eles parecem estúpidos, olhos mortos, não-humanos, como vacas, ou o quão irritante e rude são as pessoas que estão falando alto no celular no meio da fila, e olha como isso é profundamente injusto: eu trabalhei duro o dia inteiro e estou faminto e cansado e não posso nem chegar em casa para comer e relaxar por causa de todo esse maldito povo idiota.
Ou, se eu estou na forma mais socialmente consciente da minha configuração padrão, eu posso passar o tempo no engarrafamento do fim do dia ficando irritado e enojado com todos esses SUVs e picapes e caminhonetes enormes, idiotas, que bloqueiam pistas, queimando e desperdiçando seus tanques egoístas de 40 galões de gasolina, e eu posso considerar o fato de que adesivos religiosos ou patrióticos costumam estar pregados nos veículos maiores e mais egoístas, dirigidos pelos motoristas mais feios, imprudentes e agressivos, que geralmente estão falando no celular enquanto cortam os outros pra avançar 10 metros idiotas num engarrafamento, e eu posso pensar sobre como os filhos dos nossos filhos vão nos desprezar por gastar todo o combustível do futuro e provavelmente estragar o clima, e quão mimados e estúpidos e nojentos nós somos, e como a sociedade consumista moderna é um saco, e assim por diante. Você entendeu.
Se eu escolher pensar assim na loja ou na rua, tudo bem, muitos de nós pensam – só que pensar dessa forma costuma ser fácil e automático e não precisa ser uma escolha. É a minha configuração padrão natural. É a forma automática de como eu vivo as partes chatas, frustrantes e lotadas da vida adulta quando eu estou operando na crença automática, inconsciente de que eu sou o centro do mundo, e que minhas necessidades imediatas e sentimentos são o que deve determinar as prioridades do mundo.
A questão é que, é claro, há formas completamente diferentes de se pensar sobre esses tipos de situações. Nesse tráfego, todos esses veículos parados no meu caminho, não é impossível que algumas dessas pessoas nas caminhonetes já estiveram em acidentes de carro horríveis no passado e agora acham dirigir tão aterrorizante que seus terapeutas praticamente ordenaram que elas comprem uma caminhonete grande e pesada para que se sintam seguras o suficiente para dirigir novamente. Ou que a picape que acabou de me cortar talvez esteja sendo dirigida por um pai cujo filho esteja ferido ou doente no banco de passageiros, e ele está tentando levar essa criança pro hospital, e ele está numa pressa maior e mais legítima que a minha – ou seja, sou eu que estou no caminho dele. Ou eu posso me forçar a considerar a possibilidade de que todo mundo na fila do supermercado está tão entediado e frustrado quanto eu, e que algumas dessas pessoas tem uma vida mais difícil, tediosa e dolorosa que a minha.
Novamente, por favor não ache que eu estou dando conselho moral, ou que estou dizendo que você deve pensar dessa forma, ou que qualquer um espere que você automaticamente faça isso. Porque é difícil. Requer determinação e esforço, e se você é como eu, alguns dias você não vai conseguir fazê-lo, ou simplesmente não vai querer.
Mas na maioria dos dias, se você está ciente o bastante para se dar uma escolha, você pode escolher outra forma de olhar para essa senhora obesa, de olhos mortos e maquiagem exagerada, que acabou de gritar com o filho na fila do supermercado. Talvez ela não seja assim, geralmente. Talvez ela esteja acordada três noites seguidas segurando a mão do seu marido que está morrendo de câncer ósseo. Ou talvez essa mesma senhora seja a atendente do departamento de veículos motorizados, que ontem mesmo ajudou a sua esposa resolver algum problema chato através de um pequeno ato de bondade burocrática.
É claro, nada disso é provável, mas também não é impossível. Só depende do que você quer considerar. Se você tem certeza automática de que sabe o que a realidade é, e você está operando na sua configuração padrão, então você, como eu, provavelmente não vai considerar possibilidades que não são irritantes ou miseráveis. Mas se você realmente aprender como prestar atenção, então você saberá que existem outras opções. Estará dentro da sua capacidade vivenciar uma situação lotada, lenta e quente como não só significante, mas sagrada, uma chama como a que criou as estrelas: amor, companheirismo, e a unidade mística de todas as coisas, no fundo.
Não que essa coisa mística seja necessariamente verdade. A única coisa que é Verdade com v maiúsculo é que você decide como vai tentar vê-la.
Essa, eu afirmo, é a verdadeira educação, a de aprender como ser bem ajustado. Você vai conscientemente decidir o que tem significado e o que não tem. Você decide o que venerar.
Porque aqui está algo que é estranho mas real: nas trincheiras diárias da vida adulta, não existe algo como o ateísmo. Não existe "não venerar". Todo mundo venera. A única escolha que temos é o que venerar. E a razão convincente para talvez escolher venerar algum tipo de deus ou coisa espiritual – seja Jesus Cristo, Alá, ou a Deusa Mãe dos Wicca, ou as Quatro Nobres Verdades, ou algum conjunto de princípios éticos invioláveis – é que praticamente qualquer outra coisa que você venerar vai te comer vivo.
Se você venera dinheiro e coisas, se é aí que você encontra significado verdadeiro na vida, então você nunca terá o suficiente. É a verdade. Venere o seu corpo e beleza e atração sexual, e você sempre vai se sentir feio. E quando o tempo e idade começarem a aparecer, você vai morrer um milhão de mortes antes de finalmente te enterrarem. De certa forma, nós já sabemos dessas coisas. Elas já foram codificadas em mitos, provérbios, clichês, epigramas, parábolas – o esqueleto de toda grande história. O truque é manter a verdade evidente na consciência diária...
Venere o poder, e você vai acabar se sentindo fraco e medroso, e você vai precisar de ainda mais poder sobre os outros para entorpecer o seu próprio medo. Venere seu intelecto, ser visto como esperto, e você vai acabar se sentindo estúpido, uma fraude, sempre à beira de ser descoberto. Mas a coisa insidiosa sobre essas formas de veneração não é que elas são más ou perversas – é que elas são inconscientes. Elas são a configuração padrão. São o tipo de veneração em que você gradualmente se acomoda, dia após dia, ficando mais e mais seletivo sobre o que você vê e como você mede valor sem jamais estar totalmente ciente do que está fazendo.
E o suposto mundo real não irá te desencorajar de operar na sua configuração padrão, porque o suposto mundo real de homens e dinheiro e poder cantarola alegremente numa piscina de medo e raiva e frustração e desejo e veneração de si mesmo. Nossa própria cultura atual canalizou essas forças de formas que geraram extraordinária riqueza e conforto e liberdade pessoal. A liberdade de sermos senhores dos nossos pequenos reinados individuais, do tamanho de nossas caveiras, sozinhos no centro de toda a criação. Esse tipo de liberdade tem vários méritos. Mas é claro que há vários tipos diferentes de liberdades, e no grande mundo lá fora de querer e conseguir, você não irá ouvir muito sobre o tipo mais precioso. O tipo realmente importante de liberdade envolve atenção e consciência e disciplina, e ser capaz de realmente se importar com outras pessoas e se sacrificar por elas repetidamente numa miríade de formas triviais e pouco excitantes.
Essa é a verdadeira liberdade. Isso é ser educado, e saber como pensar. A alternativa é a inconsciência, a configuração padrão, a corrida maluca, a constante e torturante sensação de ter tido, e perdido, alguma coisa infinita.
Eu sei que essas coisas não soam divertidas ou joviais ou grandiosamente inspiradoras como um discurso de formatura deve soar. O que isso é, até onde eu sei, é a Verdade com v maiúsculo, com uma porção de sutilezas retóricas removidas. Você está, é claro, livre para pensar disso o que você quiser. Mas por favor não o rejeite como algum sermão hipócrita. Nada disso é realmente sobre moralidade ou religião ou dogma ou questões fantasiosas sobre vida após a morte. A Verdade com v maiúsculo é sobre vida antes da morte. É sobre o valor real de educação real, que não tem quase nada a ver com conhecimento, e tudo a ver com simples consciência – consciência daquilo que é real e essencial, tão escondido na obviedade ao nosso redor, o tempo todo, que nós temos que continuar relembrando repetidamente:

"Isto é água."

"Isto é água."

É inimaginavelmente difícil fazer isso, manter-se consciente e vivo no mundo adulto dia após dia. O que significa que mais um grande clichê acaba sendo verdade: sua educação realmente é o trabalho de uma vida toda. Eu lhes desejo muito mais que sorte.


David Foster Wallace, Isto é Água, in Ficando longe do fato de estar meio que longe de tudo



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* um dos escritores mais admirados de sua geração, o americano David Foster Wallace suicidou-se em 2008, aos 46 anos. este texto é um discurso de 2005, escrito e proferido pelo autor, para os formandos do Kenyon College, onde também lecionava.
** update - recebi a dica e repasso: a gravação do discurso, com a voz e as pausas de Wallace; assim como as risadas e o silêncio da audiência.