sábado, 29 de setembro de 2012

A alma contradiz-se


A alma dá ordens ao corpo e é imediatamente obedecida. 

A alma dá ordens a si mesma e depara com resistências.

A alma ordena que a mão se mexa, e é uma operação tão fácil, que mal se distingue a ordem de sua execução. E, no entanto, a alma é alma e a mão é corpo.

A alma dá à alma a ordem de querer: uma não se distingue da outra e no entanto ela não age. De onde vem esse prodígio?



Santo Agostinho



*




* a alma insubmissa deseja e não alcança. a alma é um estorvo. uma pedra no meio do caminho. [de que tamanho é a pedra? qual a largura do caminho?] a alma congela, enrijece e quebra. vira deserto; seca, até gretar. desfaz-se em pó? luz? estilhaços de memórias? desmancha-se em lágrimas... a alma sonha ser um corpo, sem alma. o corpo anseia ser só alma, sem casca.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Cortina de Fumaça [5] - sem filtros

Oscar Wilde

Henry Miller

J. D. Salinger

Albert Camus

Acendo o cigarro para adiar a viagem/Para adiar todas as viagens/Para adiar o universo inteiro/Volta amanhã, realidade! (Alvaro de Campos - Fernando Pessoa - in, Grandes são os desertos



 Mário Quintana





Nelson Rodrigues

Julio Cortázar

Roberto Bolaños

Vai, me passa o cigarro
Deixa o meu peito tragar
A fumaça de um amor
Que acabou de se dissipar

Mas deixa o isqueiro
Quem sabe eu esqueça...
E o fulgor dos meus olhos
Nas cinzas desapareça.

Pra cada tragada que desça
Deixo o pulmão gretado
Tentando fazer que ele aqueça
Meu coração congelado

Caíto

Zygmunt Bauman
 

Frida Kahlo

Bette Davis


Billie Holyday


Yves Saint Laurent (com Pierre Bergé)


Diana Vreeland


Nina Simone


Jeanne Moreau


Dizem que o cigarro tira
As mágoas do coração
Eu pito, re-pito e pito
E as mágoas nunca se vão...

do Cancioneiro Popular Gaúcho


Nico

Patti Smith

Marianne Faithfull

Leonard Cohen


Johnny Deep


Thelonius Monk


Caio Fernando de Abreu

...


"A solidão é meu cigarro. Eu sigo só porque é o que me convém.
O amor é pedra no abismo. A meio-passo entre o mal e o bem. Com meus botões, à noite cismo: Pra que os trilhos, se não passa o trem? 
Se o mar virar sertão, o que é que tem? " Zeca Baleiro




*






* mais um Cortina de Fumaça. este, dedicado aos intensos. aos que mergulham nas profundezas sem fechar os olhos para a escuridão. aos que inspiram os fatos da vida para si e tragam (sem vergonha de assumir). aos que fizeram das pausas para o cigarro um grande exercício do pensar - "desconfia dos que não fumam: esses não tem vida interior, não tem sentimentos. o cigarro é uma maneira disfarçada de suspirar" (Mário Quintana). ** Cortina de Fumaça, quem diria - eu mesma me surpreendo - já é série aqui no bloguito. os anteriores (o primeiro2, o 3) continuam sendo campeões de visualização. nos últimos meses, entretanto, a edição 'sexy' de número 4 vem, mês a mês, galgando os degraus do Olimpo - também, pudera! *** aos patrulheiros do meio ambiente, do bem estar e dos bons costumes, meu esclarecimento: este blog não tem a intenção de fazer apologia ao cigarro ou incitar ao vício - isto é só uma colagem de imagens, textos poéticos e canções que me gustan onde o cigarro faz parte do contexto, tão somente [e sigo sem fumar sem nem ter sido fumante un solo día de mi vida].

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Da série verdades indissolúveis: sobre a cobiça, a ganância e a avidez


  • projeto de arte criado pelo artista e designer holandês Diddo 
  • "um convite a reexaminar nossas certezas e refletir sobre a ganância"
  • cada dose contém 5ml de tinta extraídos a partir de cerca de US$10.000 em dinheiro.



*






* da página do artista, pincei também isto:"Mas o que exatamente é a ganância? A raiz de tudo que é corrupto e mal? Muitas culturas a celebram e até a estimulam, creditando a este comportamento a chave que permitiu à nossa espécie adaptar-se e evoluir com sucesso. Um algoritmo imutável impresso em nosso DNA? Uma espécie de instinto de sobrevivência que desencadeia respostas em um ambiente em constante mudança? Uma reação emocional ao nosso sistema de recompensa cultural? Ou ainda, a  personificação do lado mais escuro de nossa natureza, enraizada no medo? De tudo o que sabemos sobre a ganância, podemos concordar em uma coisa: ela existe. Se há muita no mundo - ou pouca - é uma questão de opinião, não de entendimento. Aceitar os efeitos de nosso comportamento, sem entender as suas causas subjacentes, é um salto de fé perigoso." ... a palavra "fé", acima no texto, levou-me a uma passagem na vida de Santo Agostinho. Depois da conversão, passou a levar uma vida regrada e frugal. Mas nunca deixou de beber vinho às refeições. Explicava: "Não receio a impureza do vinho e o mal que ele possa incorrer ao meu espírito. Temo a impureza da avidez por ele em minh'alma".

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

A vida só é possível reinventada [2]







  • e me aperdoe, mestre Guim -
  • "mas o senhor mire e veja: o mais importante e bonito do mundo é isto: que as pessoas, as coisas, as canções, não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão."




*






* My Favorite Things é uma canção de autoria de Richard Rogers e Oscar Hammesrtein escrita para o musical da Broadway, The Sound of Music e posteriormente transformado em filme (A Noviça Rebelde, de 1965), estrelado por Julie Andrews. ** frase no título: primeiro verso do poema Reinvenção, de Cecília Meireles.

e nada que eu possa perceber neste universo iguala-se


nalgum lugar em que eu nunca estive, alegremente além
de qualquer experiência, teus olhos têm o seu silêncio:
no teu gesto mais frágil há coisas que me encerram,
ou que eu não ouso tocar porque estão demasiado perto

teu mais ligeiro olhar facilmente me descerra
embora eu tenha me fechado como dedos, nalgum lugar
me abres sempre pétala por pétala como a Primavera abre
(tocando sutilmente, misteriosamente) a sua primeira rosa

ou se quiseres me ver fechado, eu e
minha vida nos fecharemos belamente, de repente,
assim como o coração desta flor imagina
a neve cuidadosamente descendo em toda a parte;

nada que eu possa perceber neste universo iguala
o poder de tua imensa fragilidade: cuja textura
compele-me com a cor de seus continentes,
restituindo a morte e o sempre cada vez que respira

(não sei dizer o que há em ti que fecha
e abre; só uma parte de mim compreende que a
voz dos teus olhos é mais profunda que todas as rosas)
ninguém, nem mesmo a chuva, tem mãos tão pequenas
!

e.e. cummings, (traduzido por Augusto de Campos)



*






*então, repentinamente, veio-me essa lembrança, essa profunda e melancólica nostalgia deste lugar que nunca estive [alegremente]: um encontro, uma livraria, uma surpresa que cabe em uma página, um poema desconhecido, um homem que m'o dedica...  

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

O que for, quando for, é que será o que é


Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
...
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma

Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.


Alberto Caeiro (Fernando Pessoa), in Poemas Inconjuntos 



*





a primavera é depois de amanhã... e a realidade não precisa mesmo de mim. mas o que seriam dos sonhos do mundo? não precisam eles também de um "lar" para viverem?  (e o que seria da poesia sem ti?) 

domingo, 16 de setembro de 2012

Remembering Michael








*








 
* e uma dúvida atroz: como é possível não gostar de Michael Jackson? como escreveu a Ana de Amsterdam "é preciso ter o cu muito dorido de enrabadelas intelectuais para não gostar do que é simplesmente perfeito."

Minha vida neste livro a ti dedicado


O livro “Carta a D.”, que o filósofo André Gorz escreveu para sua companheira de toda a vida —  começa com estas palavras que nunca deixam de me emocionar: “Você está para fazer oitenta e dois anos. Encolheu seis centímetros, não pesa mais do que quarenta e cinco quilos e continua bela, graciosa e desejável. Já faz cinquenta e oito anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca. De novo, carrego no fundo do meu peito um vazio devorador que somente o calor do seu corpo contra o meu é capaz de preencher”. 



(Gorz depois fez outra, digamos, dedicatória à esposa desenganada: matou-se com ela em um pacto suicida.) 




*




* trecho extraído do ensaio sobre dedicatórias em livros, escrito por Marcelo Franco. "há algo de muito íntimo em receber um livro com dedicatória" (eu mesma já me desfiz de dois grandes livros com duas incríveis dedicatórias porque me expunham demais). ** à propósito, já conhece o Eu te dedico? um tumbrl colaborativo feito de fotos e histórias de dedicatórias em livros - porque "um livro com dedicatória é um livro com duas histórias, uma que começa no primeiro capítulo e uma que começou antes de se passarem as páginas."

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

E os enamorados? Ridículos!

 
Os desiludidos do amor
estão desfechando tiros no peito. 
Do meu quarto ouço a fuzilaria. 
As amadas torcem-se de gozo. 
Oh quanta matéria para os jornais. 
Desiludidos mas fotografados, 
escreveram cartas explicativas, 
tomaram todas as providências 
para o remorso das amadas. 

Pum pum pum adeus, enjoada. 
Eu vou, tu ficas, mas nos veremos 
seja no claro céu ou turvo inferno. 

Os médicos estão fazendo a autópsia 
dos desiludidos que se mataram. 
Que grandes corações eles possuíam. 
Vísceras imensas, tripas sentimentais 
e um estômago cheio de poesia... 

Agora vamos para o cemitério 
levar os corpos dos desiludidos 
encaixotados competentemente 
(paixões de primeira e de segunda classe). 

Os desiludidos seguem iludidos, 
sem coração, sem tripas, sem amor. 
Única fortuna, os seus dentes de ouro 
não servirão de lastro financeiro 
e cobertos de terra perderão o brilho 
enquanto as amadas dançarão um samba 
bravo, violento, sobre a tumba deles. 


Carlos Drummond de Andrade, in 'Brejo das Almas'




*





* assim que, um Carlos sempre puxa outro. (e Fernandinha achou o exato ponto de sarcasmo que o poema pedia). é o que penso e sempre digo: amar demais não enjoa. mas os enamorados e toda a sorte de casaizinhos - que a polícia dos politicamente corretos não me leia - são um porre! toda gente sabe disso.)
** A verdade é que hoje, as minhas memórias de amores (não só de suas cartas, mas de todos os beijos, promessas e dores) é que são ridículas...

sábado, 8 de setembro de 2012

Nosso destino: amar sem conta


Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer, amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?
Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?
Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho,
e uma ave de rapina.
Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor à procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.
Amar a nossa falta mesma de amor,
e na secura nossa, amar a água implícita,
e o beijo tácito, e a sede infinita.



Carlos Drummond de Andrade, Amar


*


 


*já pensou na sua vida como um poema? olha que brincadeira deliciosa descobri: é só responder ao teste do site Educar para Crescer  pra saber com qual poema de Drummond você mais se parece. ** o meu poema é este lindo aqui do post. [tá escrito lá] que sou apaixonada. que sou uma militante do amor - levo o sentimento comigo para onde for. que amo e ponto. e que não tenho apenas um amor, tenho o amor em mim. verdadeiro ou não, tem como não Amar?

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

A mentira nossa de todos os dias


Não sei há quanto tempo comecei a mentir. Não sei o porquê. Mas minto - omito - meus motivos para esconder a verdade. Por que diria eu fatos à realidade?

Talvez tenha começado por mentir a mim própria. Uma mentira feita de ilusões. Uma mentira que, quem sabe, não poderia ser uma verdade mais tarde. Lá para os trinta, ainda faltavam muitos espaços do tempo.

Depois comecei a mentir aos outros. Cada um teve as suas mentiras próprias, personalizadas, feitas à medida do que se esconde ou do que não se tem para se esconder.

Menti de pés juntos, menti com os dedos cruzados, menti a rir, menti a chorar, menti sem esforço, menti com dores de peito. Mas menti e não me arrependo. A verdade ia-se fortalecendo.

A mentira de ilusões passou a ser só uma mentira, já não há tempo para ilusões. Os trinta chegaram e já há tempo passaram, mal disfarçados, à mercê das lentes de quatro dioptrias.

Então percebi que a verdade só pode existir no plano real, quando bate certo, quando tem reflexo. E me dei conta que ninguém quer viver uma verdade com uma mentirosa, uma iludida, uma falaciosa.
Agora eu quero finalmente dizer a verdade. Sem medo, sem lágrimas, sem esconderijos. Quero ver aquilo que existe e não o que eu procuro e, sobretudo, saber apreciar o que vejo, o que tenho, o que desejo.

As minhas mentiras vou eu confessando, esperando, esperando, que bem justificadas sejam menos feias, menos nauseabundas e mais inteiras. Porque hediondo não é os outros fumarem do meu ópio; é eu ver-te através de um caleidoscópio.
E então minto-me com a minha falsa coragem. O meu falso amor-próprio. A minha falsa integridade. Minto-me, porque talvez eu não mereça nada mais do que uma mentira frágil...

Não sei há quanto tempo comecei a mentir. Há muito tempo, certeza. Não sei por que minto, por que omito, por que escondo verdades. Mas por que daria eu fatos à realidade?

Talvez a verdade se tenha esgotado em mim. Talvez apenas me reste fingir que nada disto é assim.





*





* um manifesto pela absoluta utilidade da mentira em nossas vidas.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Viés



[...]
Eu queria querer-te e amar o amor
Construir-nos dulcíssima prisão
Encontrar a mais justa adequação
Tudo métrica e rima e nunca dor
Mas a vida é real e de viés
E vê só que cilada o amor me armou
eu te quero (e não queres) como sou
Não te quero (e não queres) como és

Ah! bruta flor do querer
Ah! bruta flor, bruta flor
[...]

O quereres e o estares sempre a fim
Do que em mim é de mim tão desigual
Faz-me querer-te bem, querer-te mal
bem a ti, mal ao quereres assim
Infinitivamente pessoal
e eu querendo querer-te sem ter fim
E querendo-te aprender o total
Do querer que há e do que não há em mim.


Caetano Veloso, in "O quereres"


*





* e daí quando me pergunto "que diabo insisto nisso?" que é uma injustiça, uma crueldade, enfim tanto querer e não encontrar contrapartida e mimimi mimimi, lembro do Caetano, iluminado, sorrindo de viés: "não exagera!"

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Saturno c'est moi!


Se um extraterrestre, lá do alto, em sua vigília pelas câmeras do Spaace Home View (o google street view dos ets, for sure) transformasse minha imagem de ontem à noite, no sofá, assistindo o history chanel em gif animado e a publicasse no seu mural do Plasticbooks (o facebook dos ets) instantaneamente conseguiria um meme engraçadinho que garantiria boas risadas por meia hora ou menos.

Meus lábios, estrictos em um perfeito O, um O bem redondo e desenhado. E assim também os dois olhos, as narinas e as orelhas. Três pares de oooooos mais o grandíssimo O que desenhou em minha boca um ovo de avestruz encaixado no ninho com exatidão.

Assim que, assistindo ao history, na sala aqui de casa, com os pijamas que comprei há dois anos, estampado com mini corujinhas - que não são sexies, nem chiques, nem nada, mas foram comprados por menos de 20 dinheirinhos quando custavam algo como 50 - descobri que os anéis de Saturno são feitos de gelo e flutuam no espaço numa órbita certinha e gravitacional em volta do planeta. Que o espaço entre estes, que são muitos mesmo, não é ar, escuridão nem coisa alguma, mas um hiato negro provocado pela força da gravidade de um satélite natural que é exterior ao círculo gelado. E que - rufos de tambor, alongue a exclamação o máximo possível - neste canto escuro e distante do sol da nossa Via Láctea, existe este planeta imenso e gordoto, muito espaçoso e vistoso, com suas centenas de anéis, expelindo continuamente gêiseres de cristais de gelo num fogo de artifício espacial improvável só porque no seu interior há uma fonte de magma fervente que o obriga a um espectáculo vulcânico de repuxo sideral. 

uóóoOOOOh! 




*




*  Conta a mitologia que Urano, o Céu, e Géia, a Terra uniram-se e produziram a primeira raça, os titãs, os deuses da terra, dos quais, Saturno era o mais novo. Contudo, Urano tinha horror à prole, considerava-os feios e imperfeitos por serem feitos de carne. Por este motivo, enterrou-os nas profundezas das trevas para que não ofendessem seus olhos. A mãe, Géia, começou a engendrar uma vingança contra o marido. Arrancou do seio uma pedra áspera, modelando-a numa foice afiada e deu-a ao astuto Saturno para ajudá-la. Saturno, com a foice, cortou os testículos do pai e os atirou no mar. Em seguida, libertou os irmãos e tornou-se soberano da terra. Sob seu longo e paciente reinado, a obra da criação se completou e esse período ficou conhecido como a Era do Ouro, por conta da abundância e da fartura que Saturno presidia. Como deus do Tempo, governou a passagem ordenada das estações - do nascimento e do crescimento, seguidos pela morte, pela gestação e pelo renascimento. É um deus poderoso e ambivalente: conhecido como o "grande ceifeiro" que estabelece os limites onde nem o homem nem a natureza podem penetrar é também o deus da Fertilidade. Com todo seu poder, não consegue aceitar seu destino: ser destronado da mesma maneira que havia destronado o pai. Passou a engolir todos seus filhos, assim que nasciam, para preservar seu reinado. Como rezava a profecia, seu filho mais novo, Zeus, consegue escapar e destronar Saturno, dando origem a era que conhecemos.

Saturno é também conhecido pelo nome de Cronos ou Crono, o deus do Tempo. Aquele que nos ensina a lição do tempo e das limitações da vida mortal. Nada pode ir além do âmbito da própria vida e nada permance inalterado. Uma das facetas mais claras e simples da vida, mas que nos causa tantos sofrimentos, pois é um aprendizado que chega somente com a idade e a experiência. Saturno é um deus que encarna tanto o sentido do tempo como se rebela contra ele. Por isso é destronado e humilhado, devendo aprender com a solitude, o silêncio e a dor. Representa o corpo, pois envelhece de maneira inexorável, ao mesmo tempo que se rebela contra o destino fatal e a descoberta que se está realmente sozinho na vida, a aceitação de sua própria condição: que a juventude cede lugar à maturidade e que jamais poderá ser reconquistada de maneira concreta.

sábado, 1 de setembro de 2012

Mar de Setembro



Tudo era claro:
céu, lábios, areias.
O mar estava perto,
Fremente de espumas.
Corpos ou ondas:
iam, vinham, iam,
dóceis, leves,
só alma e brancura.
Felizes, cantam;
serenos, dormem;
despertos, amam,
exaltam o silêncio.
Tudo era claro,
jovem, alado.
O mar estava perto
puríssimo, doirado.


Eugénio de Andrade


*


*...e perceber no mar bravio de inverno, nas luzes de setembro, a promessa de mais um verão.